O ABUSO EMOCIONAL NO MEIO EVANGELICO – É hora de falar sobre isso.
Escrito por Érica Fife
“Ele já mostrou a você o que é bom; e o que o Senhor pede de você? Que pratique a justiça, ame a misericórdia e ande humildemente com o seu Deus.” Miquéias 6:8
A violência doméstica é muitas vezes vista e entendida pelo viés do abuso físico, porém ela pode ser de ordem emocional também. Um documento formulado pelo Centro de Controle de Doenças nos Estados Unidos (CDC) identifica a agressão psicológica causada por um parceiro íntimo como tão significativa quanto a violência física*. A mesma instituição descreve a agressão psicológica como o uso de comunicação verbal ou não verbal com o intento de exercer controle ou prejudicar mentalmente ou emocionalmente outra pessoa. Tendo em vista que a incidência de casos de abuso contra a mulher é maior que aos homens, procede imaginar a possibilidade de que a prevalência de comportamentos abusivos contra mulheres no meio evangélico seja ainda maior. Essa possibilidade se baseia no fato de o assunto ser controverso e gerar diferentes intepretações e argumentações bíblicas do papel do homem e da mulher no casamento e onde na maioria das vezes ao homem é delegado um lugar de mais poder na relação.
Apesar da mensagem de vida abundante e liberdade que Jesus promete para seus filhos, existem mulheres cristãs, especificamente no meio evangélico, que são afligidas emocionalmente em relacionamentos que estão longe da realidade da promessa bíblica. Essas mulheres vivem presas a um ciclo de medo e toxidade. Quer seja por falta de conhecimento ou por intensão (mesmo que velada), o abuso emocional deixa marcas profundas em suas vítimas que, apesar de não serem vistas, causam danos por toda uma vida. Infelizmente, certas verdades bíblicas podem ser manipuladas de forma a contribuir para uma cultura de abuso emocional que é transferida de geração em geração. Por mais que não queiramos admitir, o meio evangélico não está preparado para lidar com essa traumática realidade e é tempo de se falar no assunto.
O que é o abuso emocional encoberto?
De acordo com o material oferecido pelo The M3ND Project**, existem comportamentos que caracterizam abuso emocional, mas não são tão evidentes como os gritos, xingamentos e nítidas ameaças. Por se tratar de agressões psicológicas de natureza manipulativa eles são de difícil identificação. O uso de poder para obtenção de benefícios próprios em um relacionamento amoroso é uma atitude abusiva. O abuso emocional encoberto é uma forma velada de coagir outra pessoa a proceder de maneira contrária a que ela deseja. O abuso emocional encoberto é beneficiado pelo desequilíbrio de poder em um relacionamento e é uma tática injusta. Às vezes ele existe com a intenção de causar dano, as vezes na tentativa de evitar responsabilidades, já outras vezes o abusador visa esconder sua própria vulnerabilidade através da manipulação e do abuso.
Por sua natureza velada, o abuso emocional encoberto pode ser difícil de ser identificado, descrito e nomeado, o que faz com que ele seja dificilmente confrontado. São várias as estratégias usadas, entre elas ameaças de maus-tratos emocionais como forma de punição e retaliação (ex.: retirada de afeição, silêncio prolongado, minimização do sentimento da parceira etc.) e o isolamento (de qualquer rede de apoio da vítima). Outra estratégia é o uso de intimidações que geram medo, ansiedade e desespero que impedem a vítima de deixar o relacionamento abusivo ou procurar ajuda. O abusador consegue assim estabelecer seu senso de “propriedade” sobre a vítima. Ele reforça sua autoridade e controle sobre a mesma que por medo acaba cedendo. Vítimas de abuso emocional encoberto, assim como no caso de demais abusos, normalmente não se sentem seguras (dentro ou fora do relacionamento).
Outros exemplos de abuso emocional encoberto são: culpar o outro por erros próprios, frequente quebra de promessas, mentiras, dissimulação para manutenção das aparências, distorção da realidade na intenção de causar confusão no outro, entre outros. Grande parte do tempo, esses comportamentos passam despercebidos pela vítima e demais pessoas. Com isso, é comum mulheres viverem anos em um relacionamento em que sabem que algo está errado, mas não sabem dar nome ao que vivem. Quando têm coragem para falar com alguém e pedir ajuda, as pessoas de fora minimizam o sofrimento feminino pois duvidam da veracidade das informações, inclusive porque a pessoa que abusa se preocupa em administrar a visão que os outros tem dele.
O abuso emocional encoberto no meio cristão
A Bíblia ensina – “Portanto, cada um de vocês também ame a sua mulher como a si mesmo, e a mulher trate o marido com todo o respeito (Efésios 5:33).” Existem homens que usam as palavras de Paulo para se imporem quando se sentem “desrespeitados”, enquanto estão sendo, na verdade, “confrontados”. É preciso imaginar o que o apóstolo diria sobre o abuso de poder no relacionamento. É difícil acreditar que o que Paulo defende aqui é que a mulher precisa se submeter a maus-tratos, inclusive emocionaisSe é para um homem amar a mulher como a si mesmo, o parâmetro deve ser a forma como ele se cuida, se trata, e se ama. Seria absurdo crer que algum homem que abusa física, sexual, ou emocionalmente uma mulher se trate da mesma maneira. Já a mulher que sofre abuso, infelizmente é coagida a temer, e não a respeitar. Temor não é o mesmo que respeito. Ela convive com o medo das retaliações consequentes pelo que faz, não faz ou mesmo por quem ela é. Teme se posicionar de acordo com suas necessidades, pois tem medo de desagradar, medo de sofrer, e medo da retaliação decorrente ao desagrado, entre outros. Precisamos lembrar nessa hora outro versículo bíblico que diz que “No amor não há medo; pelo contrário o perfeito amor expulsa o medo, porque o medo supõe castigo. Aquele que tem medo não está perfeiçoado no amor (1 João 4:18)”.
É hora do povo que se chama pelo nome de Deus (homens e mulheres) se afastar dos seus maus caminhos, se humilhar, orar, buscar a Sua face, para que sejam perdoados e curados (2 Crônicas 7:14). Da mesma maneira a comunidade evangélica precisa praticar a justiça, amar a misericórdia e andar humildemente com o seu Deus, como Ele mesmo pede em Miquéias 6:8. Homens precisam ser confrontados a deixarem para traz a cultura da supremacia masculina. Mulheres precisam ser confrontadas em sua forma de amar e suportar maus-tratos, porque temer não é amar. Não defendo aqui nenhuma ideia feminista, machista ou afins. O assunto aqui é outro. Defendo uma questão de direitos humanos que nasceu no coração de Deus e precede quaisquer outros estatutos da humanidade contemporânea. A Lei e o Evangelho da Graça estão repletos de exemplos de como as pessoas devem se tratar mutuamente. Defendo a ideia de que qualquer um que ama, respeita!
Homens, amem e respeitem como a si mesmos! Mulheres, amem e respeitem sem temer!
Entender, confrontar e ajudar
Como você vê, não é tão fácil assim identificar o abuso emocional encoberto. Porém, ele existe e é assunto de pesquisas. Uma publicação*** feita em 2021 na Nova Zelândia afirma que o abusador pode usar várias táticas coercivas para “subordinar totalmente sua vítima e sustentar seu próprio senso de poder e controle dentro do relacionamento.” A mesma publicação ainda afirma que apesar desse tipo de abuso ser visto como uma forma menos severa que o abuso físico, esse controle por coerção é amplamente reconhecido como sinal de perigo e pode levar até mesmo a extremos que atentam contra a vida. A autora da publicação explica que mulheres que lutam contra o controle exercido dessa forma emocionalmente abusiva acabam sendo ainda mais punidas e assim o “agressor mantém seu poder e controle no relacionamento”, enquanto “a vítima se convence de que não pode escapar do abuso.”
No contexto evangélico, soma-se a esse triste quadro abusivo, a crença religiosa de que essa é uma realidade que as mulheres precisam suportar por amor a Cristo. Assim pensando, essas mulheres se encontram em uma situação duplamente destrutiva. O tratamento desrespeitoso em um relacionamento íntimo é um problema cultural e muitas vezes teológico em casamentos cristãos. Quando a pessoa cresce em um ambiente onde esse tipo de tratamento é o normal e parte da cultura familiar, comportamentos e atitudes abusivas passam então a serem entendidos como algo normal e aceitável. “É comum uma comunidade e/ou líderes religiosos tirarem o foco do problema do abuso colocando a união matrimonial acima da vítima e das crianças dentro do casamento, condenando assim a vítima por se separar ou divorciar daquele que está causando danos”, afirma o material de treinamento ao combate do abuso emocional encoberto confeccionado pelo “The M3nd Project” **. Dessa forma, não só a vítima sofre o abuso do infrator como também tem esse abuso reforçado pela negligência de quem deveria acolher, oferecer socorro, e ajudar. Sendo assim, mulheres em situação de abuso muitas vezes não encontram amparo na igreja, pois no lugar de terem acolhimento e validação em meio a seu sofrimento, elas recebem desconfiança, julgamento e condenação.
Preciso aqui abrir um adendo. Não faço nenhuma apologia ao divórcio, antes pelo contrário, tenho uma visão muito elevada da aliança feita na presença de Deus. Quem abusa, quebrou e abandonou essa aliança. Defendo a união entre duas pessoas que se respeitam mutualmente, e que buscam construir uma família saudável, que não perpetuam o abuso emocional como se fosse algo aceitável e que não são coagidas a suportá-lo como se nisso houvesse virtude.
O abuso (de qualquer tipo) é comum, abrangente e traiçoeiro. A forma como respondemos a ele pode contribuir para a cura ou o aumento do problema de forma significativa. Por se tratar de um assunto permeado de confusão e preconceito, falar sobre abuso já até virou tabu. Mesmo assim é imprescindível que todos nós aprendamos a ajudar de maneira adequada pessoas que vivem em uma dinâmica de abuso para não piorarmos o trauma gerado por essa triste realidade. Um dos primeiros passos para isso acontecer, é procurar rever nossa própria visão sobre tópico e encará-lo com ousadia. Isso cabe a todos, profissionais, líderes religiosos, parentes e amigos. Está na hora de começarmos a treinar líderes, assim como o público em geral, para entender e identificar, ajudar vítimas de abuso emocional encoberto enquanto o combatemos com a graça e a verdade de Cristo.
Autora: Erica R. Fife
Terapeuta Cristã da Rede Volare